Alfredo Bosi
Para a Ecléa
Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma
só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de
exemplo.
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da
árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o,
aconchega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha,
arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa,
acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o
músculo dorido.
A mão tacteia com as pontas dos dedos, apalpa e calca
com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas.
Com o nó dos dedos, bate.
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pêlo e o alisa.
Entrança e desentrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e
esconjura, asperge e exorciza.
Acusa com o índex, aplaude com as palmas, protege com
a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.
Mede com o palmo, sopesa com a palma.
Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí, o
ali; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o
dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o
nunca, o nada.
É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe silêncio.
Saúda o amigo balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira o
braço e diz adeus. Urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o
inimigo.
Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao
sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobra-a, guarda-a.
A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o
legume, desfolha a verdura, descama o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa.
Espreme até extrair o suco. Piloa de punho fechado, corta em quina, mistura,
amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre, enfarinha, entrouxa,
enforma, desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.
A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a
e deixa-a cair.
A mão faz som: bate na perna e no peito, marca o
compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das
castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo
e do piano, empunha o arco do violino e do violoncelo, empunha o tubo das
madeiras e dos metais. Os dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos
furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra.
A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram,
palma contra palma ou entrançados os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A
mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à água do batismo e asperge o novo
cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no
ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do
amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão
absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao
comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam a extrema-unção
ao que vai morrer; e ao morto, a bênção e o voto da paz. In manus tuas, Domine,
commendo spiritum meum.
Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve
mas dúctil anatomia: oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com
as suas falanges, falanginhas e falangetas.
Mas seria um nunca acabar dizer tudo quanto a mão
consegue fazer quando a prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho
humano foi inventando na sua contradança de precisões e desejos.
A mão lavra a terra há pelo menos oito mil anos,
quando começou o Neolítico em várias partes do globo. Com as mãos, desde que
criou a agricultura, o homem semeia, poda e colhe. Empunhando o machado e a
foice, desbasta a floresta; com a enxada revolve a terra, limpa o mato, abre
covas. Com a picareta, escava e desentorroa. Com a pá, estruma. Com o rastelo e
o forcado, gradeia, sulca e limpa. Com o regador, água. Desgalha com a faca e o
tesourão.
Manejando o cabo dos utensílios de cozinha, o homem
pode talhar a carne, trinchar as aves, espetar os alimentos sólidos e conter os
líquidos que escoariam pelas juntas das mãos em concha.
Morar é possível porque mãos firmes de pele dura
amassam o barro, empilham pedras, atam bambus, assentam tijolos, aprumam o fio,
trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto, argamassam juntas,
desempenam o reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé, pregam
ripas no forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas,
recortam janelas, chumbam batentes, dão à pintura a última demão.
A mão do oleiro leva o barro ao fogo: tijolo. A mão do
vidreiro faz a bolha de areia, e do sopro nasce o cristal.
A mão da mulher tem olheiros nas pontas dos dedos:
risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze,
caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: e tece e urde e borda.
A mão do lenhador brande o machado e racha o tronco.
Vem o carpinteiro e da lenha faz o lenho: raspa e desbasta com a plaina, apara
com o formão, alisa e desempena com a lixa, penetra com a cunha, corta com a
serra, entalha com a talhadeira, boleia com o torno, crava pregos com o
martelo, marcheta com as tachas, encera e lustra com o feltro.
O ferreiro malha o ferro na bigorna, com o fogo o
funde, com o cobre o solda, com a broca o fura, com a lima o rói, com a tenaz o
enverga, torce e arrebita.
O gravador entalha e chanfra com o cinzel, pule com o
buril. O ourives lapida com o diamante, corta com o cinzel, afina com o buril,
engasta com a pinça, apura com o esmeril.
O escultor corta e lavra com o escopro e o formão.
O pintor, lápis ou pincel na mão, risca, rabisca,
alinha, enquadra, traça, esboça, debuxa, mancha, pincela, pontilha, empastela,
retoca, remata.
O escritor garatuja, rascunha, escreve, reescreve,
rasura, emenda, cancela, apaga.
Na Idade da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido
as finíssimas articulações com que se casava às saliências e reentrâncias da
matéria? O artesanato, por força, recua ou decai, e as mãos manobram nas linhas
de montagem à distância de seus produtos. Pressionam botões, acionam manivelas,
ligam e desligam chaves, puxam e empurram alavancas, controlam painéis, cedendo
à máquina tarefas que outrora lhes cabiam. A máquina, dócil e por isso
violenta, cumpre exata o que lhe mandam fazer; mas, se poupa o músculo do
operário, também sabe cobrar exigindo que vele junto a ela sem cessar; se não,
decepa dedos distraídos. Foram oito milhões os acidentes de trabalho só no
Brasil de 1975.
(estudo de Pablo Picasso)
IN: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de
velhos.São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 468-471.